Sobre Peixes e Homens

Conheça as histórias de figuras que emprestaram seus nomes a espécies importantes do aquarismo

Todo nome conta uma história. Quando nos referimos a um “Guppy” ou uma “Cobrinha Kuhli”, quase nunca paramos para pensar no homem por trás do peixe. A quem se deve a homenagem? Teria sido o naturalista que o descobriu, colocando a própria vida em perigo? Do cientista que fez a classificação taxonômica? Uma deferência a um personagem histórico, talvez? Ou uma associação simbólica com alguém que nunca sequer conheceu o peixe ao qual estaria vinculado para sempre?

Este artigo traz uma série de pessoas que, além de contribuírem para o universo conceitual do aquarismo, tiveram vidas tão ricas que merecem ser lembradas para muito além de uma caixa de vidro.

 

tag jack dempsey - O Pulo do Gobio
O homem: Willian Harrison “Jack” Dempsey (1895-1983) foi uma das maiores lendas do boxe e campeão mundial dos pesos pesados de 1919 a 1926. Tinha como marca registrada o “dempsey roll”, uma série de movimentos oscilantes seguidos de jabs demolidores, que ficou eternizada entre os fãs do esporte. Embora fosse um monstro no ringue, fora dele tinha uma personalidade afável e generosa, fazendo amizade com vários de seus antigos rivais e juízes. Tornou-se treinador, serviu como tenente da guarda costeira na II Guerra, teve seu próprio restaurante em Nova York e participou de vários filmes de Hollywood. Nada mal para quem levou tantas pancadas na cabeça, hein?

O peixe: A espécie Rocio Octafasciata refere-se a um ciclídeo da América Central que, por sua agressividade e cara de durão, foi batizado como “Jack Dempsey” em homenagem ao célebre pugilista. Existem ciclídeos muito piores que fariam mais jus ao nome, mas agora é tarde. Jack Dempsey é um ícone do ringue e do aquarismo.

 

kuhli - O Pulo do Gobio

O homem: Heinrich Kuhl (1797- 1821) foi um naturalista e zoólogo alemão. Em 1820, ele viajou para a ilha de Java com seu amigo Johann van Hasselt a fim de estudar a fauna local. Lá, ele classificou muitas novas espécies de animais, mas morreu no ano seguinte de fadiga e infecção no fígado, com apenas 24 anos. Johan van Hasselt continuou o trabalho sozinho, morrendo também 2 anos depois. Os dois estão enterrados na mesma cova no jardim Botânico de Bogor, em Java. Não, eles não eram um casal gay.

O peixe: Esta espécie de botia foi classificada em 1846 por Achille Valenciennes como Pangio kuhli, em deferência a Heirich Kuhl. Ficaria mais conhecida pelos aquaristas como “Cobrinha Kuhli”. A sua aparência de enguia e frenesi de minhoca doida provocam sorrisos em muitos aquaristas e calafrios em tantos outros.

 

ramirez - o pulo do gobio

O homem: Pouco se sabe sobre Manuel Ramirez, além dele ter vivido na região do Orinoco (Colômbia? Venezuela?) e de que foi o primeiro criador e exportador do ciclídeo que mais tarde receberia o seu nome.

O peixe: Este belíssimo peixinho foi descrito em 1948 pelos ictiologistas George S.Myers e R.R.Harry e batizado de Mikrogeophagus ramirezi em honra ao criador Manuel Ramirez, que provavelmente os ajudou muito em seu trabalho de coleta e pesquisa. Várias matrizes foram enviadas para a Europa e submetidas a um longo processo de seleção genética, que rendeu belíssimas variações (como a versão dourada e a “electric blue”) mas comprometeu seriamente sua resistência e longevidade. Costuma viver míseros 2 anos.

 

livingstone - o pulo do gobio

O homem: David Livingstone (1813-1873) foi um médico e missionário inglês que dedicou sua vida à pregação do cristianismo na África. Isso em princípio, porque ele tornou-se mundialmente famoso por ser um intrépido explorador e aventureiro ao melhor estilo “Indiana Jones”. Livingstone atravessou o continente de um extremo ao outro, descobrindo muitas maravilhas, sobrevivendo a um ataque de leão e invadindo acampamentos de saqueadores para libertar escravos. Anos mais tarde, supostamente desaparecido, a Rainha Vitória enviou o jornalista Henry Morton Stanley para procurá-lo nos rincões da África. Ao encontrá-lo numa tribo em Uiji, o único branco em meio aos negros, Stanley saudou-o com a famosa frase: “Dr. Livingstone, eu presumo?” Mas a essa altura, Livingstone já estava velho e debilitado, morrendo pouco tempo depois. Seu corpo foi recebido com honras de herói na Inglaterra, mas o coração foi enterrado na África.

O peixe: O ciclídeo valentão Nimbochromis livingstonii foi consagrado ao famoso explorador, o primeiro estudioso dos peixes do majestoso Lago Malawi, ao qual ele apelidou de “Lago das Estrelas”. Livingstone tinha mesmo poesia na alma.

 

guppy - o pulo do gobio

O homem: Robert John Lechmere Guppy (1836 – 1916) foi um naturalista inglês que, apesar da origem aristocrática, preferiu viajar o mundo como um explorador e aventureiro (convenhamos, dificilmente o filho de um açougueiro teria ido muito longe). Em 1856, Guppy naufragou na costa da Nova Zelândia e passou 2 anos vivendo entre os maoris e mapeando a ilha. Mais tarde, mudou-se para Trinidad (América Central) e, apesar de sua graduação em Engenharia Civil, escreveu vários artigos sobre paleontologia e – acredite se quiser - sobre a vida dos moluscos.

O peixe: Foi em 1866 que Guppy, em suas andanças por Trinidad, descobriu um simpático peixinho quase tão inquieto quanto ele e que se tornaria um dos animais de estimação mais difundidos no mundo. Guppy enviou alguns exemplares para a Inglaterra para serem estudados pelo ictiólogo Albert Gunther, que deu a espécie o nome de Girardinus guppii. Mais tarde, após uma série de revisões taxonômicas, o nome foi alterado para Poecilia reticulata. Mas Guppy ficou como o nome comum e sua sonoridade divertida caiu como uma luva em uma espécie tão popular entre as crianças.

 

boeseman - o pulo do gobio

O homem: O Dr. Marinus Boeseman (1916 - 2006) foi um biólogo holandês cuja vida deveria virar filme, mais precisamente um drama épico ambientado na II Guerra Mundial. Em 1940, Boeseman se dedicava à sua tese de mestrado na Universidade de Leiden, quando a Holanda foi tomada por tropas alemãs num ataque fulminante. Por meses, Boeseman manteve a fachada de pacato cidadão, mas secretamente se juntou a um grupo de resistência contra os nazistas. Ele foi capturado e mantido preso em um campo de concentração na Alemanha por 2 anos, até o fim da guerra. Lá ele contraiu poliomielite, que deixou seu braço direito quase paralisado pelo resto da vida. Mesmo assim, ao sair ele logo assumiu a curadoria de ictiologia de um museu e organizou várias expedições à procura de novas espécies no Suriname, Trinidad, El Salvador e Nova Guiné. Era um entusiasta de arraias e tubarões, mas também tornou-se um expert na enorme e confusa família de Loricarídeos (Cascudos). Em 1981, foi condecorado com a Cruz da Resistência Holandesa pelo seu heróico papel na Guerra. Ele continuou escrevendo artigos científicos até morrer, aos 90 anos.

O peixe: Há 6 espécies de peixes batizadas em homenagem ao Dr. Boeseman, mas para os aquaristas nenhuma mais significativa do que a Melatoeania boesemani. Ela foi descoberta por Boeseman em 1955, em sua expedição aos lagos Ayamaru na Papua Nova Guiné. Mas só em 1980, elas receberam a devida classificação científica pelo Dr. Gerald Allen, a partir de uns exemplares preservados pelo seu colega holandês. Em 1982, Allen foi até a Nova Guiné e conseguiu voltar com exemplares vivos. Conta-se que Boeseman ficou maravilhado ao vê-los de novo, passados mais de 20 anos. Ele havia se esquecido do quanto eles eram lindos.

 

axelrod - o pulo do gobio

O homem: Herbert R. Axelrod (1927–2017) foi um dos maiores nomes do aquarismo mundial. Autor de vários livros sobre o assunto, ele editou por vários anos a revista Tropical Fish Magazine, que chegou a ter mais de 1 milhão de assinantes. Ele também colecionou uma série de histórias incríveis, verificáveis ou não: além de ter combatido na Guerra da Coreia, ele teria caçado crocodilos com um rei belga, nadado entre piranhas na Amazônia, discutido ictiologia com o Imperador Hirohito do Japão, estudado matemática com Albert Einstein e trocado ideias sobre peixinhos dourados com Winston Churchill. Praticamente um Forrest Gump do aquarismo! O que coloca em xeque a credibilidade de muitas de suas façanhas, é que em alguns momentos ele demonstrou não ser lá muito honesto. Foi condenado por evasão fiscal nos EUA e foi acusado por vários especialistas de superfaturar a venda de sua coleção de violinos para a Filarmônica de New Jersey. Se forem pedir a minha sincera opinião, um homem que gostava tanto de peixinhos não podia ser mau.

Os peixes: Chamem o Guinness Book! Axelrodi é com certeza o nome mais recorrente entre peixes ornamentais da história, incluindo vários tetras, uma rasbora, uma melanotênia, um ciclídeo, um blênio e uma coridora. Nada que se compare, é claro, a uma das espécies mais exuberantes de todas, o Tetra Cardinal (Paracheirodon axelrodi), classificado em 1956 pelo ictiólogo Peter Schultz em honra ao famoso aquarista.

 

Exemplos adicionais:

Denison (Barbo Denisoni)

Fridman (Pseudochromis fridmani)

Randall (Randall Goby)

 

Por  Bruno Fortini

boeseman 2 - O Pulo do Gobio

Dr. Boeseman, Dr. Brongersma, Dr. Holthius, uns cigarrinhos e espécies da Nova Guiné (1954)

 

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  1. Flávia Costa Cruz Negrão de Lima 26/08/2018 at 3:54 pm · · Responder

    Que artigo simplesmente delicioso! ADOREI saber que peixes tão lindos foram nomeados em homengem a pessoas espetaculares. Eu me encantei especialmente com o Dr. Marinus Boeseman. Então, já tenho um carinho especial pelo Melatoeania boesemani. Há exemplares no Brasil?

    • Mas é claro, Flávia! Inclusive é relativamente fácil de encontrar nas melhores casas do ramo. Muito obrigado pela generosidade de sempre!

  2. Ricardo Salles 29/08/2018 at 3:15 pm · · Responder

    Caro Bruno muito bem feito e planejado! Parabéns vc nos trouxe uma informação instrutiva e de qualidade. Aguardamos por mais!

    • Obrigado pela gentileza, Ricardo! Aliás, adoraria incluir na “pauta” uma entrevista sua – um verdadeiro expert na arte do aquarismo.

  3. Meu caro Bruno… parabéns pelo blog! Excelente conteúdo e muito bom gosto… acredito que agora, os aquaristas terão uma “ferramenta” a mais para suas aventuras pelo hobby… Até eu já estou considerando voltar!… Vai fundo!!!…

  4. Belo texto!
    Demonstra sua capacidade de investigação e síntese mostra um fragmento desse maravilhoso mundo aquático e das pessoas que estão por trás dele.

    A linguagem reflete uma característica única sua de ser instrutiva e bem humorada.

    Parabéns

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