Do Oceano ao Cubículo: As Correntes do Aquarismo Marinho

Do Oceano ao Cubículo: As Correntes do Aquarismo Marinho

Nós aquaristas gostamos de nos enxergar como grandes defensores da vida marinha. Mas embora nem de longe representemos a ameaça que os ecologistas nos apontam – eles deveriam estar mais preocupados com a pesca ilegal nas Galápagos e o aterramento de recifes pela China – não dá para negar que em certa medida o nosso hobby é predatório ou, no mínimo, micropredatório. Não me entenda mal, nós amamos nossos peixes, corais, camarões, paguros e vermes de fogo (tá, esses um pouco menos!), mas convenhamos que confiná-los em uma caixa de vidro atende mais aos nossos interesses do que aos deles. E como toda demanda, existe uma indústria milionária para supri-la.

O aquarismo marinho movimenta cerca de 300 milhões de dólares ao ano*. Ao contrário do aquarismo de água doce, onde pelo menos 90% das espécies são reproduzidas em fazendas de aquacultura, na água salgada a situação se inverte: 90% das espécies são totalmente selvagens, extraídas diretamente do mar. Estima-se que sejam comercializados anualmente 30 milhões de exemplares dentre peixes, corais e invertebrados, sem contabilizar as mortes ao longo do processo – alguns biólogos sugerem até o número total acachapante de 150 milhões de exemplares!

Para piorar, cerca de 97% dos animais coletados não sobrevivem ao seu primeiro ano de cativeiro. Este não é um número qualquer soprado por tecnocratas almofadinhas da ONU. É validado por gente como Robert Fenner (1952 – 2020), aquarista e autor extraordinário que já trabalhou em todos os níveis da indústria e, apesar das ressalvas, foi um de seus mais ferrenhos defensores.

Se considerarmos esses dados aceitáveis, é melhor nos rendermos à pressão dos ecologistas e acabar com o hobby logo de uma vez. Vamos todos criar guppys, que tal? Mas se ainda der para melhorar, isso passa por entender um pouco mais da cadeia do negócio e o longo périplo que os seres marinhos atravessam até chegar em nossas casas. Assim podemos encontrar meios de minimizar o sofrimento deles e quem sabe um dia até contribuir de verdade para a sua  preservação, sem autoengano.

Hoje não é o dia de sorte da Dory nem do Gill. Foto por Shannon Switzer Swanson.

 

PARTE I – COLETA

Na maior parte das vezes, a captura de peixes ornamentais é feita por pescadores solitários pobres e maltrapilhos em localidades remotas no Terceiro Mundo, principalmente na Oceania e sudeste da Ásia. Eles pulam na água munidos apenas de snorkel, bermudinha e redes de mão (não raro também frascos repletos de cianeto de sódio), pegam o que conseguir sem muito critério e voltam para os seus barquinhos na esperança de conseguir alguns trocados com os receptadores intermediários. Em geral, estes abocanham 85% do valor de cada peixe obtido e repassam aos coitados apenas 15% do valor de exportação. Vez por outra, os coletores se envolvem em encrenca invadindo áreas de preservação ou caindo na porrada com pescadores tradicionais na disputa por espaço e cardumes (É difícil imaginar, mas em muitos lugares peixes fofinhos como o Sixline Wrasse e o Achilles Tang acabam mesmo é na panela!)

Em alguns mercados mais desenvolvidos (ex:  Austrália, Fiji e Havaí), as tristes figuras dos coletores são substituídas por grupos de mergulhadores profissionais com neoprene e cilindros de oxigênio. Normalmente, empregam técnicas mais sustentáveis de coleta e entregam os animais com boa saúde nas instalações dos exportadores para um período de aclimatação ao cativeiro. Naturalmente, animais com essa procedência são mais confiáveis e bem mais caros.

As técnicas de coleta normalmente envolvem o uso de redes de mão para mergulhadores solitários ou redes de barreira (redes retangulares de 2 metros de altura por 15 de comprimento com malha menor de 2,5 cm) em operações de grupo. Os animais capturados são inseridos em pequenos contêineres e puxados até o barco por cordas. Em geral, essas operações só são “sustentáveis” em termos, pois é comum os mergulhadores quebrarem os galhos dos corais duros atrás de peixes escondidos, selecionarem só os exemplares mais bonitos (geralmente os machos), capturarem espécimes totalmente inadequados a aquários domésticos e até mesmo machucarem os bichos durante o manuseio. Alguns chegam até a perder escamas se esfolando na malha das redes.

Em maiores profundidades, o processo pode ser bem demorado, já que para se evitar o efeito da descompressão repentina, recomenda-se subir os animais apenas 3 metros a cada período de 30 minutos. Do contrário, há o risco deles chegarem até com o estômago e o intestino pra fora! Já na superfície, como prevenção, o mergulhador usa uma agulha hipodérmica para perfurar a bexiga natatória dos peixes (só uma picadinha, dizem). Às vezes eles são mantidos por vários dias em recipientes no barco – misturados uns aos outros, expostos à luz solar, com baixa oxigenação e poucas trocas parciais de água – até os mergulhadores atingirem a cota desejada. Alguns não conseguem esperar e morrem intoxicados pela amônia.

Não dá para falar em coleta de animais marinhos sem mencionar o famigerado cianeto de sódio. Antigamente esse veneno era muito utilizado como pesticida no plantio de óleo de palma no sudeste asiático. Mas não demorou muito até alguém perceber que ele também poderia ser bem útil na captura de peixes ornamentais, bastando colocá-lo em uma garrafinha diluído com água e borrifar  sobre os recifes de corais. Todos os bichos que estiverem nas imediações caem grogues asfixiados – alguns morrem bem ali mesmo – e é só escolher o que levar embora. Outros tantos irão sucumbir em poucas horas e há aqueles que parecem saudáveis até demais (alguns aquaristas mencionam até uma “aura radiante”), mas que podem apresentar paralisias e danos cerebrais muitos meses depois, morrendo sem qualquer aviso.

Além disso, o cianeto provoca um severo dano colateral nos corais, pois mata as algas zooxantelas que fazem simbiose com eles e são responsáveis pelo seu processo de fotossíntese. Ou seja, uma única incursão de cianeto é capaz de devastar um pequeno recife. Esse veneno é empregado largamente por coletores pobres ao redor do mundo, mas as Filipinas são especialmente infames pelo seu uso ostensivo.

Captura de peixes ornamentais nas Filipinas, com a implacável garrafinha de cianeto. Foto por Jurgen Freund.

 

Principais Pontos de coleta

A imensa maioria das espécies de peixes e corais duros coletadas (cerca de 91%) é originária do Indo-Pacífico, desde o Mar Vermelho até as ilhas mais remotas da Oceania. Os outros 9% residem no Atlântico, com destaque para o Caribe e em menor medida o Brasil. A costa oeste da América, a costa leste da África e o Mediterrâneo ainda têm pouca representatividade na indústria. Faltam dados atuais precisos sobre o volume de produção total de cada país, mas em termos gerais os 3 mais importantes polos exportadores e responsáveis por 80% da produção mundial são:

1) Indonésia: É hoje a líder global em exportações, tanto em variedade de espécies quanto em número de indivíduos – muitas dezenas de milhões todos os anos, incluindo o endêmico Cardinal Bangai (Pterapogon kauderni). Ela tem uma grande vantagem competitiva sobre a concorrência, por estar localizada em uma região conhecida como o Triângulo de Coral, o epicentro da vida marinha no planeta. Os peixes daqui em geral chegam ao seu destino em boas condições, apesar do crescente uso do cianeto e dos coletores e intermediários serem infinitamente sacaneados pelos exportadores de ascendência chinesa. A Indonésia também é de longe a maior fornecedora de corais duros, sendo responsável por quase 80% do suprimento mundial.

2) Filipinas: Também localizadas no perímetro do Triângulo de Coral, eram as maiores exportadoras de peixes ornamentais até serem suplantadas pela vizinha do sul Indonésia. As Filipinas são recordistas absolutas no uso disseminado de cianeto de sódio (mais de 70% das coletas, apesar da proibição) e pela má conservação de seus outrora magníficos recifes de coral. As águas rasas já estão exauridas e os coletores têm que se aventurar cada vez mais nas profundezas para cumprir com suas cotas diárias. Já foi reportado que 30 a 60% dos peixes originários desta região costumam morrer nos primeiros 3 dias após a chegada nos importadores. Talvez as coisas fossem um pouco diferentes se o governo filipino aplicasse a mesma gentileza que reserva aos narcotraficantes….

3) Sri Lanka: Este pequeno país ao sul da Índia é o mais antigo polo exportador mundial de peixes marinhos, estando em operação desde 1930. O célebre mergulhador Rodney Jonklaas (1925-1989) foi um grande promotor da indústria local e se opunha ferozmente ao uso do cianeto como uma prática antiesportiva. A fauna do Sri Lanka inclui muitas espécies comuns ao Indo-Pacífico e outras endêmicas, como o Blênio Midas (Ecsenius midas).

Outros destaques:

Quênia: É o principal exportador de animais marinhos da África e um dos maiores do Índico.  Embora a indústria local já exista desde os anos 70 e tenha passado por muitos altos e baixos, até hoje ela é meio mambembe e centrada na figura de pescadores pobres sem amparo do governo. Ainda assim, ao contrário dos nativos da Ásia e Oceania, eles nunca recorreram ao uso do cianeto e coletam seus peixes um de cada vez. Assim, conseguem imprimir uma qualidade superior e, naturalmente, cobrar mais caro por isso. As espécies endêmicas de destaque são o Peixe Palhaço Allardi (Amphiprion allardi), o Peixe Anjo Centropyge acanthops e o magnífico Radiant Wrasse (Halichoeres iridis).

Havaí: Em atividade desde 1950, o Havaí talvez fosse o pesqueiro de peixes ornamentais mais desenvolvido e sustentável em atividade no mundo. Mas a indústria do turismo, com endosso dos ecologistas, resolveu responsabilizar o aquarismo como a maior ameaça à vida marinha local. Resultado: o congresso americano aprovou uma lei em 2021 proibindo a coleta de animais marinhos no Havaí. Em poucos anos, é possível que clássicos do aquarismo como o Yellow Tang e o Kole Tang sejam vagas lembranças.

Iêmen: Maior representante da fauna endêmica do Mar Vermelho no mercado global, com destaque para o Purple Tang (Zebrasoma Xanthurus). A atividade exercida sem controle nem um sistema de gerenciamento eficaz fez com que as populações de algumas espécies como o Anjo Real (Pygoplites diacanthus) já demonstrem sinal de declínio.

Austrália: Com a Grande Barreira de Corais, é natural que a Austrália logo se convertesse em um dos maiores territórios de “caça” para o aquarismo. No entanto, as dificuldades impostas pela legislação, os atritos com a indústria do turismo e a restrição de várias espécies fazem com que os exportadores prefiram recorrer a outras paragens mais facilitadas.

Haiti: Principal polo exportador da fauna endêmica do Caribe e Atlântico, com espécies bem diferentes das usuais do Indo-Pacífico. Destaque para o Royal Gramma (Gramma loreto), um xodó do aquarismo marinho desde sempre.

Fiji: Segundo maior exportador de corais duros (18%), atrás apenas da Indonésia. Também é um centro de distribuição de peixes exóticos (ex: Flame Angel e Blênio Canário) coletados em outras ilhas do Pacífico sul, como Tonga, Ilhas Salomão, Vanuatu e Bali.

Brasil:  É um exportador de importância razoável, sendo visto basicamente como um “Caribe dos pobres”. As poucas espécies de maior interesse até recentemente eram proibidas pelo Ibama, mas a predação acontecia mesmo assim através do mercado negro interno e da exportação de Grammas brasiliensis, cavalos marinhos e espécimes raros (ex: mutantes de Holacanthus ciliaris valem alguns milhares de dólares no Japão). Em 2020, uma resolução do Ministério da Agricultura permitiu a coleta de quaisquer espécies brasileiras para o aquarismo, desde que não sejam insulares nem estejam nas listas de risco de extinção. Difícil dizer se isso vai fazer alguma diferença para as rotas do aquarismo mundial, mas a coleta oba-oba sem qualquer regulação pode representar um grande risco para populações locais de peixinhos como o Neon Goby amarelo (Elacatinus figaro).

Um dia normal de trabalho em Manila, nas Filipinas. Para muitos, é o fim da linha. Foto por Gregg Yan.

 

PARTE II – A JORNADA

Após a coleta, os peixes são levados para os centros de quarentena dos receptadores. Muitos são verdadeiros mocós com luz tremeluzente, crostas de sal recobrindo as bordas dos aquários, filtragem precária e fiação elétrica exposta entre poças d’água. Já outros possuem instalações profissionais, com baterias limpas e organizadas onde os animais são separados por espécies e tamanhos. Ali eles podem permanecer de poucas horas a até alguns meses, se adaptando à vida em cativeiro e tratando de potenciais infecções e ferimentos. Por uma questão logística, quanto mais curto esse período e mais rápido o peixe seguir para a exportação, melhor. Time is money!

Às vezes os próprios receptadores são os exportadores, mas em lugarejos mais rurais isso não acontece. Daí os animais precisam seguir de transporte rodoviário, não raro por longas horas em estradas poeirentas, para outros centros de quarentena em cidades maiores onde mais um extenuante processo de adaptação os aguarda. Quanto mais longo o processo, pior o stress e maior a chance de bactérias e parasitas botarem pra quebrar, fazendo o número de mortos subir pra estratosfera. Felizmente, em geral as instalações e mão de obra dos exportadores são mais qualificadas que as dos intermediários e se o peixe chegou vivo até aqui, as chances de sucesso se tornam bem melhores.

Antes do envio para a exportação, é de praxe submeter os animais a um jejum mínimo de 48 horas para esvaziarem o conteúdo de seus estômagos e não sujarem os recipientes de transporte. Isso pode até parecer frescurite, mas é necessário para evitar uma intoxicação com a descarga de amônia e queda de PH. Em geral, eles são colocados em saquinhos de polietileno de camada dupla com 1/3 de água e 2/3 de oxigênio e acomodados em caixas de isopor preenchidas com espuma de poliestireno para melhor isolamento térmico. Um problema comum nesta etapa é a supersaturação de oxigênio, provocando a doença da bolha de gás.

Em seguida, os animais são entregues com suas licenças de exportação para as companhias aéreas especializadas em transporte de cargas vivas, cujos aviões já possuem hoje compartimentos adaptados com pressão e temperatura constante. Mesmo assim, recomenda-se que eles não fiquem mais do que 40 horas em trânsito, sendo 24 horas uma média bem provável. É um serviço bem caro, que responde por pelo menos 50% do valor de venda ao consumidor final. Fora o preço do combustível, isso se deve a alta taxa de risco associada ao transporte de seres vivos onde qualquer atraso pode ser fatal.

Zanclus para exportação em Paranaque, Filipinas. É uma espécie que já começa a viagem com a barbatana esquerda. Foto por Gregg Yan.

 

PARTE III – DESTINOS

Depois de sua pouco glamourosa viagem internacional, os animais (nem todos, já que alguns podem ter morrido pelo stress, fome, falta de oxigênio, choque térmico, efeito retardado do cianeto, etc) chegam às instalações das empresas de importação e distribuição de animais marinhos. Aqui os peixes e invertebrados são submetidos a um novo processo de quarentena, focado na remoção de parasitas, compatibilização de espécies, adaptação a parâmetros químicos e ração industrial. A primeira refeição após o jejum da viagem é o momento mais tenso, pois é quando muitos espécimes afetados por cianeto passam mal e estrebucham ali mesmo.

Após o período de aclimatação no importador, os animais são enviados para vários destinos diferentes:

– Varejistas revendedores

– Redes atacadistas (Pet Centers)

– Outros importadores

– Lojas de aquários

– Clientes finais (como no caso dos famosos sites Live Aquaria e Masterfisch, que enviam exemplares pelo correio para todo o território dos Estados Unidos e Europa, respectivamente)

Ao chegarem nos tanques domésticos dos aquaristas, supomos que os peixes possam finalmente ter um pouco de paz, certo? Quisera fosse verdade. Eles saem do ecossistema aquático mais estável do mundo – o oceano – para um aconchego cubicular onde os parâmetros flutuam quase que diariamente e espécies incompatíveis ficam o dia inteiro se atracando.  Eles têm uma chance em dez de sobreviver ao primeiro ano. Muito promissor.

Importadora no Colorado, EUA. Foto por Caleb Kruse,

 

Principais países importadores

O aquarismo marinho é um hobby caro, então é natural que seus maiores mercados consumidores sejam países com populações de alto poder aquisitivo, em pleno contraste com a pobreza extrema dos países coletores na outra ponta do processo:

1) Estados Unidos: Não tem pra ninguém. Os EUA constituem o maior mercado mundial do aquarismo marinho, absorvendo sozinho mais de 50% dos peixes e 80% dos corais duros coletados ao redor do mundo. São muitos milhões de exemplares enviados todos os anos para mais de 1 milhão de lares americanos (lembrando que muitos deles têm aquanerds aficionados com vários tanques em casa). As principais portas de entrada são Los Angeles (mais de 50%), Miami e Nova Iorque, que redistribuem para o interior do país.

2) Reino Unido: País intimamente ligado à história do aquarismo, a velha Inglaterra é o segundo maior mercado consumidor do mundo. Mas pouca gente sabe que ela também é um importante centro de reexportação e de aquacultura (principalmente Palhaços Ocellaris) para outros membros da União Europeia e Estados Unidos.

3) Alemanha: O mercado alemão de aquarismo é marcado por lojas e feiras exuberantes, muita tecnologia e uma longa tradição em aquacultura. Também é um importante importador e distribuidor de animais marinhos que passam diariamente pelo movimentadíssimo Aeroporto de Frankfurt.

4) Japão: Responde por cerca de 10% das importações. Até mesmo pela proximidade do Indo-Pacífico, o mercado japonês é o primeiro a absorver os espécimes mais exóticos e em melhores condições, para frustração dos igualmente endinheirados EUA e Europa. É o melhor lugar para encontrar borboletas, wrasses e anjos raríssimos.

5) Hong Kong: Um verdadeiro hub de importação e exportação de peixes ornamentais bem na porta de entrada do insaciável mercado chinês, um oásis do mercado negro de animais. Quer falar de ecologia com esses caras? Boa sorte, sabendo que eles sozinhos importam mais de 20 milhões de cavalos marinhos desidratados para suas pajelanças obscurantistas todos os anos e que os raros peixes Napoleão (Cheilunus undulatus) são servidos vivos em aquários de restaurantes. Os controles governamentais são pífios e os dados facilmente maquiados, mas sabe-se que Hong Kong recebe importações de pelo menos 30 países (entre eles o Brasil) e, por sua vez, exporta principalmente para Estados Unidos e Japão. O próprio mercado doméstico cresceu muito e sabe-se que altos dignatários do Partido Comunista Chinês possuem um ávido interesse por peixes raros para somar às suas extravagâncias burguesas.

 

Principais Espécies Exportadas

Os dados sobre as espécies marinhas exportadas são muito dispersos e anacrônicos, mas estima-se que haja nada menos que 2.300 delas circulando pelas rotas do aquarismo mundial. Hoje há uma reorientação da indústria em privilegiar peixes pequenos que melhor se acomodem a tanques nano (até 114 litros), de relativo baixo custo e “reef safe”, compatíveis com a presença de corais e invertebrados. Como a operação é global, não há concentração de espécies em mercados específicos, embora as mais raras sejam normalmente enviadas para aqueles de maior poder aquisitivo, notadamente o Japão.

É seguro afirmar também que pelos menos 50% dos peixes pertencem à família Pomacentridae (donzelas, incluindo aí os peixes palhaço), que costumam ser pequenos, resistentes e bem adaptáveis à vida em aquário, apesar de uma insistente vocação tirânica. Felizmente este não é o caso da número 1 da lista, a Green Chromis (Chromis viridis), um adorável peixinho cardumeiro coletado aos milhões por toda a extensão do Indo-Pacífico. Em segundo lugar está o Palhaço Ocellaris (Amphiprion ocellaris) eternizado pelo desenho “Nemo”. Apesar da sua extensa procriação em aquacultura a custo baixo, infelizmente muitos coletores insistem em capturar exemplares selvagens sem qualquer motivo razoável além do fato básico de que as pessoas continuam comprando.

É o caso de outros dois nomes da lista de mais vendidos – o Cardinal Bangai (Pterapogon kauderni) e o Mandarim Verde (Synchiropus splendidus). Apesar de haver exemplares aquaculturados de ambas as espécies, a produção nunca decolou devido ao alto preço unitário e a imensa maioria deles continua sendo extraída na natureza. Para piorar, ao contrário do Nemo, esses dois peixinhos estão em vias de extinção.

Mais dramática ainda é a situação do Cleaner Wrasse (Labroides dimidiatus), um peixe que sabidamente não é adequado para a maior parte dos aquários domésticos e continua sendo vendido na maior – só em 2008 foram capturados mais de 100 mil exemplares do Indo-Pacífico. Trata-se de um wrasse que ganha a vida retirando ectoparasitas da pele de peixes grandes e precisa de uma extensa lista de clientes na porta do seu “lava-jato” todo os dias. No confinamento de um aquário, isso não é possível, e mesmo comendo outras coisas, ele logo fica desnutrido e morre em poucos meses.

O Harlequin Filefish, o Zanclus, enguias-fita, várias espécies de borboletas coralíneos, peixes papagaio, peixes cachimbo e corais dendronephtyas também têm suas vidas severamente encurtadas nos aquários. Para cada um que sobrevive, outros tantos têm que morrer. Por que os aquaristas continuam tomando parte alegremente nesse patíbulo?

Outro aspecto recente da indústria é o novo segmento de aquarismo de luxo ostentação voltado para espécimes raros provenientes de ilhas longínquas, de grandes profundidades ou mesmo de hibridizações com combinações únicas de cores. Se no aquarismo popular os peixes são meros commodities, aqui eles se convertem em itens de especialidade onde os clientes se dispõem a pagar pequenas fortunas. Um Centropyge Abe, por exemplo, pode ser obtido pela bagatela de 34 mil dólares (mais de 170 mil reais, quando esse artigo foi escrito). O pobre peixe nem desconfia, mas ele é mais valioso que uma Harley Davidson.

Green Chromis (Chromis viridis): recordista absoluto dos aquários marinhos. Foto por Paul Atkinson.

 

CONCLUSÃO

Ao final do processo, ficou claro que cada peixe em nossos aquários é um sobrevivente. Aquela donzelinha pela qual você não dá nada provavelmente viajou mais de 10 mil quilômetros e passou por pelo menos 6 processos de aclimatação (coleta – atravessador – exportador – transporte aéreo – importador – loja), um mais estressante que o outro, antes de chegar no seu tanque. Pense nisso antes de usá-la para ciclar um tanque novo ou descartá-la como um pedaço qualquer de Fish Mc Nugget.

Para além do drama específico de cada peixe ou invertebrado, há a questão ambiental, onde o aquarismo também não tem feito bela figura. Nosso hobby é diretamente responsável por inúmeros desastres mundo afora, como a destruição do ecossistema das Filipinas e a introdução dos vorazes peixes leão (Pterois volitans) no Atlântico. Entretanto, não podemos aceitar ser usados como bodes expiatórios de indústrias tão ou mais predatórias, como o turismo e a pesca, que por algum motivo ($$$) não atraem a mesma ira implacável de ativistas e legisladores.

O nosso caminho para a redenção é mesmo a aquacultura. Infelizmente ainda são poucas espécies reproduzidas em larga escala em cativeiro (variantes infinitas de palhaços Ocellaris e mais alguns poucos pseudochromis, blênios, cardinais e góbios). A perspectiva é animadora com experimentos bem-sucedidos de Tangs e Anjos, desde que aceitemos pagar preços premium por espécimes aquaculturados – condição que infelizmente muitos aquaristas ainda não estão dispostos a atender, enquanto ainda houver peixes no mar como itens de fácil reposição.

Considerando que provavelmente os recifes de coral estarão extintos na natureza em apenas 30 anos, a sobrevida de muitas espécies (e um eventual retorno aos oceanos, para muito além do horizonte) depende da determinação do aquarismo em manter e reproduzir organismos em cativeiro. Deixaremos de ser parte do problema para assumir um papel dianteiro na solução.

Relembrando as palavras do saudoso Robert Fenner, em seu livro “O Aquarista Consciente”:

“A Você, aquarista
Que a sua labuta com peixes e organismos marinhos amplie seu fascínio pelo mundo vivo, lhe inspire a partilhar experiência com os outros e a promover a salvaguarda do planeta”.

Atacaremos ao amanhecer.

Por Bruno Fortini

*Os números referentes ao aquarismo marinho são muito incompletos, conflitantes e anacrônicos. Ainda não há um sistema efetivo global de monitoramento de  exemplares e valores comercializados todos os anos. Para piorar, o controle esbarra na classificação das espécies (os nomes científicos nem sempre são usados), dados falseados por elos da indústria e balanços referentes ao aquarismo marinho misturados aos de água doce. Enfim, é uma zorra! O pesquisador Andrew Rhyne seus colegas pesquisadores realizaram um esforço louvável de organizar as informações disponíveis em seu projeto Aquarium Trade Data.

 

Referências:

Livros:

AXELROD, Herbert R.e BURGESS, Warren E. Saltwater Aquarium Fishes. TFH Publicatios: New Jersey, USA, 1995.

FENNER, Robert. The Conscientious Marine Aquarist. TFH Publications: New Jersey, USA, 2001.

 

Sites:

Aquarium Trade Data

Korallenfishe im Aquarium

Positively Filipino

Reef to Aquarium

 

Artigos

BAZAWIR, Gamal M e AL AGWAN, Zaher Ali. Marine Ornamental Fishes in the Red Sea. Center of Environmental Sciences and Studies of Aden University:  Yemen, 2020.

BANQUERO, Jaime. The stressful journey of ornamental marine fish. Ocean Voice International: Canada, 1996.

BIONDO, Monica V. Importation of Marine Ornamental Fishes to Switzerland. Institute of Ecology and Evolution of the University of Bern: Bern, Switzerland, 2018.

BIONDO, Monica e BURKI, Rainer. A Systematic Review of the Ornamental Fish Trade with Emphasis on Coral Reef Fishes – An Impossible Task. Foundation Franz Berner: Bern, Sweitzerland, 2020.

CHAN, Thierry T.C e SADOVY, IVONNY. Profile of the Marine Fish Trade in Hong Kong. Department of Ecology and Biodiversity of the University of Hong Kong: Hong Kong, China, 2000.

GURJÃO, Livio M. e LOTUFO, Tito M. Espécies marinhas explotadas pela aquariofilia marinha no Brasil. 2018. Universidade Federal do Ceará, Instituto de Ciências do Mar, Programa de Pós-Graduação em Ciências Marinhas Tropicais, Fortaleza, CE, Brasil

LILLEY, Gayatri e LILLEY, Ron. Towards a sustainable marine aquarium trade: An Indonesian perspective. Live Reef Fish Bulletin Board: New Zealand, 2007.

KEMWA, G.M.; FULANDA, B.; OCHIEWO, J.; KIMANI, E.N. Exploitation of Coral Reef Fishes for the Marine Aquarium Trade in Kenya: Current Status, Opportunities and Challenges. Kenya Marine and Fisheries Research Institute: Nairobi, 2016.

OPIYO, Mary, MUGO James B., KYULE, Domitila e OKEMWA, Gladys. Overview of Ornamental Fish Production in Kenya: Current status, opportunities and challenges. Kenya Marine and Fisheries Research Institute: Sagana, 2016.

PINNEGAR, John K. MURRAY, Joanna M. Understanding the United Kingdom marine aquarium trade–a mystery shopper study of species on sale. Journal of Fish Biology: Lowestoft, UK, 2018.

RHYNE AL, TLUSTY MF, SCHOFIELD PJ, KAUFMAN L, MORRIS JA Jr, et al. Revealing the Appetit of the Marine Aquarium Fish Trade: The Volume and Biodiversity of Fish Imported into the United States. PLOS ONE, 7.

SCHMIDT, Christiane and KUNZMANN, Andreas. Post-harvest mortality in the marine aquarium trade: a case study of an Indonesian export facility. SPC Live Reef Fish Information Bulletin: Australia, 2005.

TALBOT, Ret. Quantifying the aquarium trade to help it become more sustainable. Mongabay Series, 2016.

TOWNSEND, Dick. Sustainability, equity and welfare: A review of the tropical marine ornamental fish trade.  Live Reef Fish Bulletin Board: New Caledonia, 2011.

WABNITZ, C., TAYLOR, M., GREEN, E., RAZAK, T. 2003. From Ocean to Aquarium. The Global Trade in Marine Ornamental Species. UNEP-WCMC, Cambridge, UK.

YAN, Gregg. Saving Nemo – Reducing mortality rates of wild caught ornamental fish.  Live Reef Fish Bulletin Board: New Caledonia, 2016.

SHARE IT:

Commenting area

  1. Para mim, é o artigo mais importante do blog. Confesso que meus olhos se encheram de lágrimas muitas vezes, mas fico esperançosa de que haja mudanças e parabenizo o autor pelo trabalho de conscientização e riqueza de informações.

  2. O autor sinaliza pontos de contradição do aquarismo marinho.

    Após a leitura do texto fica a pergunta: “além dos interesses econômicos o que faz alguém querer participar de alguma etapa desse processo cruel que começa com a retirada de seres das profundezas dos oceanos e termina com o depósito destes em cubículos de vidro?”

    • O Julian Sprung, autor famoso de livros de aquarismo, já abordou essa questão numa palestra. Segundo ele, a resposta seria a “biofilia” (não confundir com zoofilia, pelo amor de Deus! Rsrsrs): a necessidade de comunhão diária com os seres vivos. Claro que isso não poderia ser feito em detrimento deles.

  3. Esqueci de comentar….é um belo texto.
    Sem erros de linguagem.
    Reflete muitas horas de pesquisa.
    O que dá credibilidade para as informações.
    Parabéns ao autor.

  4. Bom texto porém tendencioso. Faltou falar de preservação e até mesmo aquelas espécies em extinção q quando são capturadas ilegalmente são passadas para tentativa de desenvolver em algum criador legalizado. Ou detalhe que as espécies de criadores são mais resistentes que os coletados, e os coletados quase não valem mais a pena com baixo preço como dos ocellaris… enfim tristezas do hobby

    • Obrigado pelo comentário. Bom, a proposta original do texto era estudar a rota do extrativismo de peixes ornamentais marinhos. Os louváveis esforço de preservação merecem mesmo um estudo a parte. Mas nem sempre a coleta é guiada por um senso de propósito empresarial claro. Por exemplo, o Ocellaris que você mencionou continua sendo muito capturado na natureza (o segundo, só perdendo para a Green Chromis) mesmo sendo facilmente reproduzido em cativeiro e vendido baratinho ao consumidor final.

  5. Outro detalhe, nem todo animal hj em dia é um refém ou sobrevivente como afirma no texto, somente aqueles coletados msm e passados pelo fim triste, enfim faltou mt nesse texto ai

Leave a Reply

You can use these tags: <a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <strike> <strong>