A Era dos Mutantes: Como a genética mudou o aquarismo

 

Os animais domésticos atravessaram tantas gerações se adaptando às necessidades e caprichos humanos que muitos nem de longe lembram mais as suas formas selvagens. Tomemos por exemplo o melhor amigo do homem, o cão. Todas as raças que temos hoje derivam de um único ancestral comum (um híbrido de chacal e lobo – mais chacal do que lobo, na verdade) que, em no mínimo 10 milênios de civilização, foram se especializando às mais diferentes vocações: caçar raposas ou patos, disputar corridas, guardar propriedades, servir no exército, puxar trenós, guiar cegos e até atormentar os ouvidos dos vizinhos e os tornozelos das visitas.

Não dá para exigir tanta versatilidade assim dos peixes ornamentais.  Mesmo que tenham aprendido uma coisinha ou outra em alguns séculos de aquarismo, eles sempre foram mais apreciados por critérios estéticos do que práticos. E neste campo, são imbatíveis: mais de 20 mil espécies compondo o grupo com a morfologia mais diversificada do reino animal. Se calcularmos que um bom número deles encontrou lugar em nossos tanques e, com tantas variantes geradas por cruzamentos seletivos, as possibilidades são ilimitadas. De fato, muitas vezes nós nem sabemos direito quais espécies conservam suas características originais e quais são praticamente pokemons de laboratório.

Este artigo fala um pouco sobre esses mutantes de barbatanas, dos casos mais singelos a outros tão bizarros que fariam Darwin rasgar a teoria de evolução.

 

Os Primórdios

A seleção genética no aquarismo é quase tão antiga quanto o próprio hobby. Kinguios ou douradinhos (Carassius auratus) já são criados desde o século III na China Imperial, a partir de uma espécie de carpa prateada e muito sem sal para os padrões atuais. É bem provável que os primeiros exemplares com algumas escamas douradas tenham sido separados dos demais e induzidos a se reproduzir com outros que exibissem as mesmas características, dando origem a uma matriz de peixes inteiramente dourados. A técnica foi se aprimorando e  criando muitas variantes multicoloridas, entre elas uma indefectivelmente preta, que decora aquários desde o século XVI: o famoso Telescópio. Muitas outras versões seriam produzidas mais tarde no Japão (como o douradinho de cauda comprida, conhecido por aqui simplesmente como “Japonês”), Europa e Estados Unidos.

Duas delas são especialmente insólitas: o Celestial e o Bubble-Eye. O primeiro tem os olhos projetados para cima, reza a lenda para que pudesse contemplar a majestade do imperador chinês sempre que ele passasse. E o segundo testa os limites da crueldade animal, com duas bolhas de ar gigantes ao lado da cabeça, altamente vascularizadas. Nem precisa perguntar o que acontece com o pobre peixe se por acaso elas se romperem.

As carpas (Koi) também são resultantes de um cruzamento seletivo da carpa preta (Magoi) em um processo análogo ao dos Kinguios, com a diferença que esta arte se deve mais aos japoneses do que aos chineses. Por não serem propriamente peixes de aquário, mas sim de lagos, vamos deixá-las convenientemente de lado.

Celestial - O Pulo do Gobio

Celestial: Curvem-se ao imperador!

 

Bubble Eye - O Pulo do Gobio

Bubble Eye com bochechas de buldogue velho: "Você não vai com a minha cara?"

 

Cores e mais cores

A busca por cores extraordinárias é a principal motivação do cruzamento seletivo no aquarismo profissional. Não é à toa que os melhores resultados são obtidos por peixes muito prolíficos, como os betas, poecilídeos (guppies, molinésias, platis e espadas) e alguns ciclídeos. Essas espécies exibem um colorido bem mais exuberante do que suas contrapartidas selvagens, que seriam consideradas opacas e feinhas hoje em dia.

Em alguns casos, o cruzamento seletivo é meticulosamente utilizado para converter uma espécie absolutamente comum em um item de luxo. É o caso do peixe mais caro do mundo, o Aruanã Platinado, que pode chegar a custar módicos 400 mil dólares. Dizem que ele traz boa sorte e prosperidade ao seu proprietário, embora qualquer um que possa pagar esse valor num peixe provavelmente não tenha motivos para reclamar da vida.

Aruana - O Pulo do Gobio

Aruanã Platinado: Quer trocar sua Ferrari neste peixe?

 

Albinos

Peixes albinos são alvos fáceis na natureza, perdendo sua capacidade de camuflagem e sendo bem mais fotossensíveis que seus parentes normais. Mas na segurança de um aquário, eles podem se tornar os astros principais. Difícil precisar ao certo quando os primeiros peixes albinos surgiram no mercado, mas é fato que hoje praticamente todas as espécies reproduzidas em cativeiro possuem suas variantes albinas, às vezes custando até mais caro que as originais. Definitivamente,  os albinos conquistaram seu lugar ao sol.

Albinos - O Pulo do Gobio

Discos albinos: Cuidado com os olhos vermelhos....

 

Caudas de véu

Essa moda começou com os Paulistinhas nos anos 80 e hoje é muito comum entre várias espécies de tetras, barbos, molinésias, ciclídeos e coridoras. A barbatana longa parece não atrapalhar o peixe em nada, exceto que o torna uma vítima preferencial dos mordedores de cauda.

Um cascudo muito glamouroso

 

Balões

Esta é uma categoria do tipo “ame ou odeie”. Os “Balloons” são essencialmente variantes deformadas e meio desengonçadas das espécies originais, com o dorso arqueado e a barriga inchada. Há alguns anos, qualquer peixe que tivesse essa aparência seria descartado, mas hoje eles encontraram um nicho de mercado. Mesmo que alguns aquaristas odeiem os Balloons como uma perversão da ordem natural, convém lembrar que muitos nadam sem maiores dificuldades e têm vidas absolutamente normais, tanto quanto um bolotinha pode ter.

Balloon - O Pulo do Góbio

Balloon Molly: Gordinho gostoso!

 

Papagaios

Estes peixinhos rechonchudos e bonachões mal fazem ideia de toda a polêmica que os cerca. Os Papagaios são híbridos desenvolvidos na Ásia a partir de uma mistureba genética incluindo o Ciclídeo Midas, o Boca de Fogo e sabe-se lá mais quem.

Os puristas o consideram uma anomalia e uma prova da desconsideração humana com o bem estar animal, alegando que o peixe nada torto e nem consegue fechar a boca direito. Mas os fãs do Papagaio dizem que é tudo intriga da oposição e que ele pode sim ter uma vida longa e feliz no aquário, inclusive firmando um forte vínculo emocional com seus donos, como cãezinhos (vira-latas?) submersos. Verifique por si mesmo neste vídeo.

Papagaio - O Pulo do Góbio

Papagaio: Sempre sorrindo!

 

Os Glofish

Peixes fosforescentes: a última palavra em psicodelia aquarística! Os Glofish
foram criados em um experimento científico realizado na Universidade Nacional de Cingapura em 2001. Alguns Paulistinhas – sempre eles, pela sua maleabilidade genética – receberam um gene extraído de águas vivas que reagiria na presença de poluição ambiental, fazendo o peixe brilhar com uma luz verde. Os cientistas logo perceberam o apelo comercial dessa ideia e registraram a marca Glofish, sendo o primeiro caso de patente de peixe da história. O Glofish é oferecido em 5 opções de cores, com nomes bem chiques: Electric Green, Starfire Red, Sunburst Orange, Cosmic Blue e Galactic Purple. E se no início a espécie template era só o Paulistinha, hoje já existe Glofish de Tetra Negro, Barbo Sumatrano e até de Labeo Frenatus. É só questão de tempo até aparecerem muitos outros. Um detalhe interessante é que tanques de Glofish foram utilizados para compor o ambiente de boates no extremo oriente – mas é de se duvidar que os peixes curtiam a balada.

Glofish - O Pulo do Góbio

Não precisa calibrar o seu monitor: Eles são assim mesmo!

 

O Futuro dos Mutantes

Muitos aquaristas veteranos, principalmente os adeptos do aquapaisagismo, renegam os mutantes por comprometerem a autenticidade naturalista que tentam conferir aos seus tanques. Para eles, esses peixes são vendidos como meros produtos apelativos e de fácil reposição para  neófitos e crianças, incompatíveis com os ideais conservacionistas do hobby. Percebo um viés anticapitalista nesse raciocínio e talvez uma leitura muito pretensiosa do nosso passatempo, onde sinceramente o hedonismo estético supera em muito a consciência ambiental (afinal, por que ninguém quer criar piabinhas cinzentas em casa?)

Um argumento bem válido é que muitos  desses peixes carregam defeitos genéticos, traduzidos em constituição frágil, deformações aleatórias e baixa expectativa de vida. Os cruzamentos seletivos incessantes fizeram com que até espécies muito resistentes perdessem a sua vitalidade. Se antigamente espécies como kinguios sobreviviviam em baldes a base de miolo de pão (não que isso seja uma situação ideal!), hoje isso é uma sentença de morte. Mas sabemos que nem sempre essa regra é válida.

Algumas criações, como o Bubble Eye, são sim moralmente questionáveis, pois se traduzem em sofrimento animal. Mas nunca vi nenhum aquarista reclamar das múltiplas variedades de guppies e bettas, que também são totalmente artificiais. Enfim, é inútil resistir. Os mutantes vieram pra ficar.

Por Bruno Fortini

 

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  1. Flávia Costa Cruz Negrão de Lima 14/10/2018 at 2:57 pm · · Responder

    Artigo brilhante, Bruno! Dessa vez, você se superou. Confesso um certo nível de perturbação que o texto me causou, característica dos melhores escritores na minha opinião.

  2. Edson Rechi 28/01/2020 at 2:45 pm · · Responder

    Excelente texto! Bastante objetivo e plausível sobre o tema.

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