Peixes da Hora da Saudade

Você já reparou como os animais de estimação também moldam a imagem de uma época? Por exemplo, as raças de cachorros que víamos nas ruas antigamente não são as mesmas de hoje. Os dobermanns cederam o posto de vigilantes de oficinas para os rottweilers. Os pitbulls surgiram e desapareceram na mesma rapidez que seus donos, os pitboys. Poodles e cocker spaniels perderam seus cantinhos nos sofás para pugs e buldogues franceses. Em algum momento nos últimos 20 anos, alguém achou ideia que criar golden retrievers em apartamentos minúsculos era uma ideia sensacional. E já faz tanto tempo que não vejo um dálmata que poderia jurar que eles são uma raça praticamente extinta.

Os peixes de aquários seguem a mesma lógica. Minha memória viva desse processo volta até os anos 80, quando minha mãe me levava para passear no centro da cidade e eu não podia passar perto de uma flora ornamental (lojas de aquários eram raras!) que invariavelmente eu voltava pra casa todo feliz carregando um cascudinho dentro de um plástico. Bons tempos aqueles! Borbulhadores com chumaços de algodão, limpezas traumáticas de filtro uma vez por ano (matando metade da população do aquário) e vendedores que não faziam a menor ideia do que estavam vendendo. Era uma época sem internet, com informação e público dispersos. Só aprendíamos alguma coisa lendo livros, conversando com aquaristas mais velhos (geralmente uns tipões bem excêntricos!) ou mais provavelmente através da própria experiência – custando a vida de muitos pobres peixes.

O que acho mais curioso é como muitas espécies que antes eram tão comuns hoje se tornaram raras na maioria das lojas de aquário. Para comprovar como a fauna piscícola mudou muito ao longo do tempo, segue uma relação de peixes que tiveram seus dias de glória no universo aquarístico dos anos 80 e agora parecem totalmente obsoletos:

1- Ituí cavalo (Apteronotus albifrons): Um peixe aterrador, mas também irresistível para qualquer garotinho de 10 anos. Todo negro e com a barbatana ventral oscilando como uma capa fantasmagórica, é como se você colocasse o próprio ceifador sinistro dentro do seu aquário. Infelizmente, na prática é quase isso mesmo. Se durante o dia ele fica enfurnado na toca, a noite é hora de sair à caça de peixes menores - começando sempre pelos olhos! Um parente próximo do peixe faca africano, o ituí é cego e localiza suas presas  emitindo uma fraca corrente elétrica. Penso no mais absoluto terror dos peixinhos inocentes que já tiveram que dividir espaço com esse monstro. Hoje quase não se vê dele por aí, sendo quase restrito a colecionadores de espécies exóticas.

Foto: Chetan Sharma

 

2- Beijador (Helostoma temminckii): Um clássico dos anos 80. Todo mundo adorava os tórridos beijos na boca que eles trocavam entre si, sem saber que eles não eram amantes apaixonados, mas sim 2 machos se engalfinhando!  Ainda mais curioso é que a versão original dele no sudeste da Ásia é de cor cobre - ou seja, a versão rosada que conhecemos é um mutante obtido por seleção genética. Apesar de ser um anabantídeo como os betas, a sua personalidade exuberante o torna parecido com um ciclídeo. Por algum estranho motivo, é bem difícil encontrá-lo no comércio hoje. Uma pena, porque é diversão garantida para a garotada.

Foto: N. Dresler

 

3 - Pacu (Metynnis argenteus): Um peixe que você usava para assustar as visitas, se fazendo de doido ao colocar uma piranha no aquário. São parentes muito próximos, com a diferença básica que o pacu é bonzinho – inclusive ele parece estar sempre sorrindo! Infelizmente, é muito assustadiço, pula do aquário ao menor estímulo e detona as plantas todas em poucos dias. Assim, o pacu não é lá não muito indicado a um aquário plantado, razão pela qual desapareceu quase por completo das lojas mais refinadas e hoje é encontrado em alguns estabelecimentos brejeiros focados em ciclídeos e peixes jumbo. Não, não é a mesma espécie de pacu da qual seu tio pescador tanto fala.

Foto: Fisharoma

 

4- Barbo ouro (Barbodes semifasciolatus): Este provavelmente foi o primeiro barbo de todo aquarista, sendo com certeza uma opção bem mais pacífica para aquários comunitários do que o implacável barbo sumatrano. O que pouca gente sabe é que em seu estado selvagem no sul da China ele é um peixe cobre esverdeado. A versão amarela com pintinhos pretos que conhecemos foi desenvolvida nos anos 60 pelo aquarista Thomas Schurden, de New Jersey. O barbo ouro - como todos os barbos em geral - andam meio esquecidos, suplantados por seu primos menores, os rasboras. Há uma nova versão dele, o barbo gema, que é todo amarelo sem as características pintinhas pretas.

Foto: Mirko Rosenau

 

5- Molinésia preta (Poecilia sphenops): Uma das imagens mais vívidas da minha infância são as banquinhas de camelôs repletas de saquinhos com peixes, geralmente  poecilídeos com platys e espadinhas. Uma vez eu levei um casal de molinésias pintadas para casa e em poucos dias eles encheram o tanque de filhotinhos. Fiquei extasiado com o que parecia ser um verdadeiro milagre. Mal sabia eu que as molinésias se reproduzem igual coelhos submersos. Disponível em várias versões, com destaque para a preta e a manchada, ele ainda é relativamente fácil de encontrar, mas sem a mesma proeminência de antes. Embora muito utilizada para comer algas, hoje sabemos que a molinésia vive bem melhor em água alcalina com sal (já a vi até mesmo adaptada para aquários marinhos) e portanto não é recomendável para aquários comunitários típicos.

Foto: Tetra Advanced Fishkeeper

 

6- Cruzeiro do sul (Hemiodus gracilis): Um peixe elegante mas muito inquieto, famoso por saltar dos aquários como um foguete teleguiado. Tem esse nome pela marca na cauda que lembra muito a referida constelação. Seja na aparência ou no comportamento, ele mais parece um ciprinídeo do que o caracídeo que é. Vive bem em aquários plantados amplos e espaçosos, capazes de acomodar um cardume de 6 indivíduos. O cruzeiro do sul hoje está praticamente esquecido, substituído pelo seu sósia indiano, o barbo denisonii. Assim como o time homônimo, ele caiu para a segunda divisão.

Foto: Freidburg.de

 

7- Tanictis (Tanichthys albonubes): Na minha época, esse peixinho era uma espécie de “neon dos pobres”, bem mais barato e resistente que o outro. É uma percepção bem injusta, porque nem parentes eles são – o neon é um tetra da Amazônia e o tanictis um minúsculo ciprinídeo das Montanha da Nuvem Branca no sul da China. Apesar de ser de um peixe de água mais fria, ele quase que invariavelmente era colocado num aquário comunitário típico ou então num laguinho ao ar livre na companhia de kuinguios porcalhões. Pobrezinho, pagou o preço pela nossa ignorância.

Foto: Choy Heng Wah

 

8- Cascudo rabo de chicote (Loricaria parva): Nos anos 80, todo aquário tinha que ter um cascudinho a pretexto de comer as algas que brotavam por toda parte. Hoje, sabemos que ele faz muito mais sujeira do que ajuda e ter um é uma escolha de preferência pessoal (mesmo porque os comedores de alga são muito mais eficientes!). Naquela época, não tínhamos a mesma variedade de cascudos de hoje com seus infinitos “L”s, mas uma espécie se destacava: o cascudo rabo de chicote, com formato hidrodinâmico para resistir à força das corredeiras nos córregos do Paraguai.  Encontrar um desses hoje é uma aventura.

Foto: Lukas Karnatowski

 

9- Mandizinho (Pimelodella gracilis): Um conselho para toda a vida: “qualquer peixe-gato com bigodes compridos é um predador”. Quisera os vendedores das lojas de aquário dissessem isso a cada criancinha que inadvertidamente levava um mandizinho para casa. Era chacina garantida. Pra piorar, ele possui um ferrão de cada lado da cabeça muito propício a grudar na redinha ou perfurar o dedo do aquarista desavisado. Hoje felizmente ele é um peixe mais conhecido no universo da pescaria do que no aquarismo.

Foto: Aqualog

 

10- Paraíso (Macropodus opercularis): Por fim, onde tudo começou. Vindo do extremo oriente, o paraíso é o primeiro peixe de aquário a se ter notícia, com registros que remontam a 1869 na França. E esse pioneirismo não é à toa. Além de muito chamativo, ele é um peixe de água fria e, como todo anabantídeo, consegue respirar ar atmosférico – ou seja, vive muito bem em aquários sem termostato ou qualquer sistema de oxigenação. Infelizmente,  ele é bem agressivo e faz picadinho de peixes menores.  Faz muito tempo que não o vejo, o que pode ter a ver com a grave redução da sua população selvagem nas águas poluídas de Taiwan. Ou então, a espécie inteira se matou sozinha.

Foto: Kris Canales

 

Uma elegia

Os peixes de aquário vêm e vão, acompanhando o ávido interesse dos vanguardistas por espécies exóticas nos rincões do mundo. Com a proeminência cada vez maior dos aquários plantados, nos últimos 20 anos o mercado se reorientou para garimpar novos peixes minúsculos propícios a esse ambiente, como tetras e rasboras. Muitas das espécies habituais dos aquários comunitários de antigamente perderam seu lugar de honra entre os hobbystas de “elite” e tiveram que se acomodar nos tanques mais humildes do povo popular. Já outras ficaram restritas a especialistas, que recriam ambientes específicos a uma única espécie.

E há também aquelas que parecem esquecidas para sempre na escuridão do passado.

E agora, já a caminho do outono da minha vida, eu tenho pensado cada vez mais nelas, tentando me agarrar a um fiapo da minha infância perdida.

Por Bruno Fortini

 

Referências:

ALDERTON, David. Encyclopedia of Aquarium & Pondfish. Dorlink Kinderseley: Londres, 2008.

BURTON, Jane. Peixes Ornamentais. Edições Siciliano: Sao Paulo, 1983.

CUST, George. O Grande Livro dos Peixes Ornamentais. Ao Livro Teécnico: Rio de Janeiro, 1982

GAY, Jeremy. Choosing the Right Fish for your Aquarium. Hamlyn: Londres, 2006.

 

Sites:

www.aquarismopaulista.com

 

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  1. Que texto bacana, lembrei da minha infância nos anos 70/80 em Rio Preto, pedindo para minha mãe comprar os supra citados no Mercado municipal. Parabéns.

  2. Muito boas informações.

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